Dos limites políticos da guerra

(Viriato Soromenho Marques, in Diário de Notícias, 17/09/2022)

Os peritos militares que durante a guerra-fria aconselharam os governos, olhariam para o que está a suceder com a atual guerra na Ucrânia com incredulidade. A razão por que nunca os EUA e a URSS, mais a multidão dos Estados seus dependentes, chegaram a um conflito direto foi a convicção, partilhada em Moscovo e Washington, de que uma guerra central dificilmente poderia ser controlada. A escalada, isto é, a subida de intensidade no conflito acabaria por conduzir ao colapso infernal de uma destruição mútua assegurada com o uso generalizado de armas atómicas. Uma forma de homenagear a memória de Gorbachev será a de recordar que um dos seus méritos foi o de ter recusado a perigosa ilusão de que seria possível travar uma guerra nuclear limitada à Europa central (afetando “apenas” a RFA, a RDA, a Checoslováquia e a Polónia). Na verdade, até ao quebrar do gelo entre a OTAN e o Pacto de Varsóvia pelas iniciativas de paz de Gorbachev, estavam vigentes, tanto a Ocidente como a Leste, doutrinas militares ofensivas que previam o eventual uso de armas nucleares táticas no próprio campo de batalha. O general Bernard W. Rogers, SACEUR da OTAN, defendia o conceito do “ataque profundo” (strike deep), dando o seu nome àquela que ficou conhecida também como a doutrina da Air-Land Battle. No lado soviético, a réplica foi dada pela doutrina dos Grupos Operacionais de Manobra, do marechal Nicolai Ogarkov, cuja insistência no reforço do orçamento militar soviético levaria ao seu afastamento, em 1984, mesmo antes da chegada de Gorbachev.

O que transforma a atual guerra na Ucrânia num escândalo global de segurança reside no facto de nela estarem envolvidas 4 das 5 maiores potências atómicas do planeta.

A importante vitória militar ucraniana em Kharkiv, que tornou visíveis e audíveis mesmo dentro da Rússia as críticas à condução da guerra por parte de Putin, torna mais urgente a pergunta que deveria ser colocada em todos os centros de decisão política dos países envolvidos. Quais os objetivos e quais os limites da ação militar? O Secretário da Defesa dos EUA, Lloyd Austin, afirmou querer enfraquecer a Rússia. Kiev fala mesmo de “vitória”, tendo solicitado aos EUA armas capazes de projetar mísseis a 300 Km, bem dentro do território russo. Uma escalada bélica levará a cenários progressivamente mais horríveis. O primeiro já é visível, a destruição das infraestruturas de energia, transportes e comunicações ucranianas (fazendo lembrar a ofensiva aérea da OTAN contra a Sérvia em 1999), aumentando também o sofrimento das populações civis. Mas mesmo que a sorte das armas continuasse a sorrir a Kiev e aliados, no limite, a possibilidade de perder a Crimeia, a base naval de Sebastopol e o acesso ao Mar Negro seriam considerados como uma “ameaça existencial” para a Rússia — com Putin ou sem Putin — podendo levar ao uso de armas nucleares táticas contra as forças ucranianas. Caberia, então, à OTAN a existencial decisão política de levar, ou não, o seu apoio à Ucrânia, apesar do país não estar coberto legalmente pelo artigo 5.º do Tratado do Atlântico Norte, ao ponto de envolver diretamente as tropas e os povos da Aliança numa guerra que, rapidamente, se tornaria nuclear e de extermínio. Nesta dança macabra, o encarniçamento belicista, em ambos os campos, é uma ameaça sobre o futuro coletivo, bem para lá do atual teatro bélico. O que sobra de racionalidade política tem de impor um limite à guerra, sob pena desta devorar tudo à sua volta.

Professor Universitário


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2 pensamentos sobre “Dos limites políticos da guerra

  1. Os americanos falam de forma diferente! Já é tempo de perceber isto. Quando dizem a um país: “vamos trazer-lhe Democracia”, significa …… Exterminar-vos-emos, esvaziaremos as vossas reservas de ouro e roubaremos o vosso petróleo! Querem exemplos?

    Democracia é poder do povo! Não podemos dizer que nos EUA como em Portugal, e mais geralmente na Europa somos democracias !!!!

    Muitos dos líderes da Europa são corruptos ou estão ligados pelo conhecimento de coisas inomináveis sobre as suas vidas pessoais,aos serviços estrangeiros (americano, russo, israelita, etc.)

    Devo acrescentar que muitas pessoas razoáveis podem ver que os Estados-nação europeus estão a ser colocados numa posição cada vez mais subserviente em relação aos EUA, enquanto a estratégia de caos liderada pelos EUA desde então visa a longo prazo pelo menos o enfraquecimento da Rússia (alguns falam de desmantelamento). Estamos a viver os resultados de uma inútil e prejudicial criação de inimigos. Sim, o desprezo nas relações internacionais é mais do que um defeito, é um erro.

    De facto se a Europa compreender isto a paz será sustentável no mundo. A hegemonia americana passa imperativamente pela guerra…Kosovo, Ucrânia, Iraque, e em breve Taiwan é, de facto, existencial para eles. E enquanto a Europa os seguir, não haverá paz no mundo.

    Todas as guerras e especialmente as grandes guerras foram todas iniciadas na Europa, as chamadas inteligentes e democráticas…a arrogância,orgulho,invejas entre oligarquias é a causa de todas estas guerras. Façam a si mesmos as verdadeiras perguntas..

    Não há autonomia para a Europa, não porque os povos da Europa não tenham alguma forma de comunidade cultural e o desejo de reforçar estes laços, mas sim por causa do imperialismo americano.
    Os nossos governantes são atlantistas porque devem o seu poder ao capital que servem. Isto não tem nada a ver com vontade ou carácter, é uma submissão ao capital. O capital não tem nação,paz,amor e não tem cultura comum,. O capital é supranacional e não tem outros interesses comuns para além da acumulação ilimitada.

    Esquecemos como era o nosso país há 40 anos atrás, o seu modo de vida, as suas tradições, as suas particularidades regionais. Mas é o mesmo em todo o mundo. O poder imperialista destruiu quase tudo: MacDonald’s ou Uber, Apple ou Amazon, para simplificar, mataram o que nos tornou especiais, com a cumplicidade dos “donos”. E está longe de ter terminado. Ficaremos à mercê dos ianques enquanto não impôr-nos a nossa vontade, o nosso livre arbítrio, a escolha do povo pelo povo, aquilo a que costumávamos chamar democracia.

    O povo portugués é atlanticista. Por convicção, por mímica, por estupidez, por egoísmo, tudo ao mesmo tempo. Sabem, sem o formular, que o seu nível de vida depende da pilhagem de centenas de milhões de pessoas. Não estão prestes a abdicar de uma onça dos seus privilégios. O tio Sam garante a segurança dos bens, por isso o adoram..

    É relevante para psicologizar as relações internacionais (um suposto desprezo do Ocidente pela Rússia como justificação para a guerra)? Esta é uma razão muito estranha, que tem sido utilizada desde a invenção da guerra moderna para reduzir o conflito à simplicidade de uma disputa de bairro.

    As razões da guerra são mais susceptíveis de se basear num conjunto de interesses particulares, essencialmente o enriquecimento de alguns em conluio com os poderes que estão de ambos os lados, que são suficientemente importantes para se unirem e desencadearem uma guerra.
    Ter-se-ia um bom momento de lucidez quando se teria dito que a primeira vítima desta guerra é o povo, enquanto que no final do conflito, como sempre, os beligerantes retomarão a contabilidade dos pontos ganhos ou perdidos, e continuarão os seus negócios habituais.

    Do ponto de vista dos poderes políticos, cada vez mais ilegítimos na nossa europa é diferente porque todos eles obedecem como cães de colo aos Estados Unidos, que sonham consigo próprios como um país mundial e ameaçam qualquer insubordinação pela força.
    Todos sabemos muito bem que toda esta guerra não é apenas um mal-entendido cultural, porque não estamos tão longe uns dos outros, o problema é que os EUA querem possuir tudo, pensam que a Terra é deles como uma seita de fanáticos… E os russos não se deixarão que isso aconteça.

    Eu iria mais longe do que esta visão messiânica. Esta visão transparece dos filmes americanos (os EUA salvam o mundo) e de toda a cultura que nos é importada e até da reformulação de acontecimentos históricos como a aterragem.
    Os da Mayflower eram fanáticos radicalizados (puritanos) expulsos pelos povos da Europa. Há este desejo de evangelizar o mundo segundo o Cristo do Capitalismo!

    Os Estados Unidos mostram sinais preocupantes de desvio autoritário ou mesmo teocrático ou fascista: O questionamento do aborto pelo Supremo Tribunal, Trump apelando às suas tropas para “invadir” enquanto ele está a ser legalmente processado por múltiplos casos, incluindo ter guardado documentos altamente secretos no seu clube de campo, Trump usando mensagens “codificadas” usadas por movimentos do tipo Qanon e milícias supremacistas que invadiram a capital,…
    Queremos ser vassalos desta nação em queda?

    Contudo, as coisas rapidamente se descontrolaram: A Rússia não teria compreendido o lado ocidental? A Rússia teria compreendido mal o facto de os Estados Unidos terem colocado laboratórios de investigação bacteriológica a 40 km da sua fronteira? A Rússia teria compreendido mal o facto de o país vizinho estar a lançar batalhões neonazis contra a população de língua russa depois de ter proibido a sua língua materna? A Rússia teria compreendido mal os mais de 2 milhões de ucranianos que fugiram para o seu território desde 2014?

    A Europa deve imperativamente emancipar-se dos Estados Unidos..

    A Rússia pode ganhar a guerra em qualquer altura se quiser na Ucrânia, lançando um míssil nuclear estratégico.

    A energia continua a ser um pilar essencial de todas as economias e parece-me totalmente absurdo ver a Europa afastar-se de um vizinho rico nestes recursos e geograficamente do mesmo continente para, insensatamente, pedir muito dinheiro nos mercados internacionais. Lamento, gosto da Ucrânia, mas não é essencial para a Europa porque se se quisesse realmente protegê-la, não havia razão para se submeter às obrigações da Nato (leia-se EUA) a fim de satisfazer as intenções americanas em relação aos seus próprios interesses. Quem ganha com este resultado? Ninguém excepto dois países, a China e os EUA. Até a Rússia perde por ser vassalo dos preços da energia da China, desperdiçando-a ao preço negociado pela China, e não estou sequer a falar de os países europeus terem de sofrer aumentos de preços astronómicos e potencialmente terem de se restringir este Inverno com o gás de xisto americano a preços elevados mas insuficientes. Lamento, mas esta guerra que está a decorrer na dita Europa não é nossa, serve interesses económicos e políticos que não são de todo europeus!!!

    Também no que diz respeito aos interesses americanos, que são diferentes dos interesses dos países europeus. Os americanos querem manter a sua supremacia mundial, os países europeus ………..bem sim, mas o que é que os países europeus querem em última análise? Será que estes dados históricos convergem no que diz respeito aos países europeus? Terá a Alemanha esquecido os seus objectivos hegemónicos sobre os países europeus? A França ainda está iludida quanto à sua importância na Europa ? A Polónia, com o seu revanchismo excessivo em relação à Rússia (mas não em relação à Alemanha, no entanto …….), quer existir como actor principal na Europa (mas joga o filho submisso em relação aos americanos). A Espanha não é um pouco indiferente à Europa? É verdade que podemos esquecer os países protestantes do Norte da Europa, que elegem pequenos líderes burgueses e têm as políticas de merceeiros mesquinhos e picuinhas sem qualquer alcance. Tudo isto faz a Europa pensar?

    Tal como já foi dito, este conflito verá dois vencedores, os EUA e a China. Os europeus têm sido fracos nas últimas décadas porque têm sido demasiadamente maternalistas por parte dos EUA. São como crianças incapazes de tomar conta das próprias vidas desde a Segunda Guerra Mundial.. Quando Putin for deposto ou morrer, apenas o seu sucessor determinará se a Rússia será asiática ou europeia. Pois a Europa estenderá a mão à Rússia se esta já não for governada por um tirano. No entanto não esqueço que a europa tem eleições sim, mas não mais democráticas do que a Rússia, por isso não julgo o seu sistema de governo, apenas o uso unilateral que Putin faz dele ..

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